O mito da fundação na era do simulacro
Maria de Lourdes
Lauande Lacroix
Especial para o Alternativo
Em  1912, no trabalho intitulado Fundação do Maranhão, José Ribeiro do  Amaral afirmou ser a missa rezada pelos capuchinhos em 8 de setembro de  1612 considerada “o verdadeiro auto de fundação da cidade”. Este livro,  por sua vez, pode ser indicado como um marco na construção de uma  “tradição inventada”, lembrando a conhecida expressão do historiador  britânico Eric Hobsbawm. 
Naquele  ano, pela primeira vez, foi comemorada a “fundação francesa de São  Luís”, iniciando-se já com a festa do “tricentenário”. Até então, a  tradição historiográfica, abrangendo cronistas e historiadores  portugueses e brasileiros, todos com conhecimento das obras deixadas  pelos franceses, destacando-se Claude d’Abbeville, afirmava que a cidade  fora fundada por ordem da corte de Madri, pois era o tempo da União das  Coroas Ibéricas. 
Leia-se  Berredo em seus Annaes Históricos do Estado do Maranhão (1749, 3ª.  Edição, 1905, p. 162 e 163): “Logo que o General Alexandre de Moura  sahio da Bahia do Maranhão, applicou Jerônimo de Albuquerque o principal  cuidado à útil fundação de huma Cidade naquele mesmo sítio, obra de que  também se achava encarregado por disposições da Côrte de Madrid com  repetidas honras justissimamente merecidas”.
A  passagem é clara, a cidade foi fundada sobre o sítio dos franceses.  Quase sem alterações, César Marques, no Dicionário Histórico-Geográfico  da Província do Maranhão (1870, 3ª. Edição 1970, p. 445), afirma:  “Jerônimo de Albuquerque, inteiramente senhor de suas ações e livre dos  cuidados inerentes à guerra, aplicou-se à fundação da cidade, hoje de  São Luís, como lhe fora recomendado pela Côrte de Madrid” (grifos do  autor, diferindo a cidade do forte).
Barbosa  de Godois, na História do Maranhão (1904, p. 167), registra: “De posse  do governo do Maranhão, Jeronimo d’Albuquerque cumprindo as ordens que  recebera da corte de Madrid, tratou com solicitude da fundação da  cidade, que pôs sob a proteção da Senhora da Victória, dando-se todavia o  nome de São Luiz, que os franceses haviam posto ao seo forte”.
Expedição  - Autores situados em momentos distintos, séculos XVIII, XIX, início do  século XX. A lista envolvendo quase a totalidade dos cronistas é longa e  afirma o corrente nos registros históricos, a expedição de La  Ravardière, ainda em fase de exploração da região, construiu um forte de  pau-a-pique, tomado e reformado pelos portugueses, responsáveis pelo  início da construção do espaço urbano, conforme consta do Regimento  deixado por Alexandre de Moura ao capitão-mor Jerônimo de Albuquerque. 
No  século XIX, a dissonante veio nas observações de Ferdinand Denis. Nas  “Notas Críticas e Históricas sobre a Viagem do Padre Yves D’Evreux”, que  acompanharam a edição de 1864 da Viagem ao Norte do Brasil, afirma:  “segundo a Notícia que nos dirige, entregou La Ravardière ao comandante  português a cidade nascente e a fortaleza de São Luiz” (2002, p.385).  Como Evreux não se refere em seu relato à “cidade nascente”, o  comentário de Denis deve ser olhado com justa reserva.
A  leitura dos textos deixados pelos franceses não encontra menção a  nenhuma cidade, ainda que embrionária. O estudo detalhado empreendido  por Andréa Daher, por exemplo, em O Brasil Francês: as singularidades da  França Equinocial (1612-1615), não menciona a existência ou a fundação  de uma cidade, não obstante a extensa documentação compulsada. Em  palestra e entrevista aqui realizadas, a autora usou o termo “fundação  literária”, que é uma boa expressão, mas não pelos motivos indicados, a  existência da França Equinocial enquanto narrativa.
O  embaixador Vasco Mariz e o capitão Lucien Provençal, autores de um  livro também recente, La Ravardière e a França Equinocial: os franceses  no Maranhão (1612-1615), defensores das origens francesas da cidade de  São Luís, ressaltam: “... na França Antártica, houve, sim, intenção  concreta e imediata de se fundar uma cidade na baía da Guanabara, que  seria a capital da nova colônia – Henriville – nome escolhido em honra  do soberano francês da época, Henrique II. No Maranhão, entretanto, essa  intenção não ficou tão clara” (2007, p. 149). Concordam ainda que: “Em  nenhum momento Abbeville e Evreux mencionaram aquele local como a cidade  de São Luís, sede ou capital da colônia” (p. 70, grifo dos autores).
Tomada  de posse - A missa celebrada em 8 de setembro de 1612 fazia parte de um  cerimonial de tomada de posse das terras, analisado em detalhe pela  historiadora Patricia Seed em Cerimônias de Posse na Conquista Européia  do Novo Mundo (1492/1640) (Unesp, 1999). Novamente não há referência à  fundação da cidade. Esta é uma ligação feita pelos letrados locais no  início do século XX, os que compuseram o grupo dos Novos Atenienses e  fundaram a Academia Maranhense de Letras.
As  circunstâncias da virada do século, momento de intensa criação de novas  “tradições”, na análise de Hobsbawm, foram aqui vividas num debate  sobre a necessidade de retomada dos tempos da Atenas Brasileira. A idéia  da fundação francesa nasceu em momento caracterizado pela busca das  nossas singularidades, levando a uma reinterpretação fantasiosa das  origens. Neste sentido sim, poderíamos falar em uma “fundação  literária”.
A  mudança da interpretação é um dado, basta ler os livros. Explicar o  porquê é do interesse dos historiadores e não é correto indicar  desconhecimento das obras francesas, pois Abbeville é sempre citado. Dez  anos depois da primeira comemoração em 1912, o “novo fundador”, La  Ravardière, ganhou um busto de bronze. Na falta de uma pintura, um  desenho ou mesmo uma descrição dos traços fisionômicos do representado, o  escultor Bibiano Silva recorreu a um velho cassaco da Estrada de Ferro  São Luís/Teresina. Hoje, os mais desavisados vêem naquela escultura os  traços do próprio La Ravardière. Em 1926, a flor-de-lys, símbolo da casa  dos Bourbon, foi i ncorporada ao brasão e à bandeira do município.
Em  tempos recentes, uma “reforma da Fortaleza do Palácio dos Leões” foi  alardeada na imprensa local, com alusões ao Forte São Luís e suas  “muralhas originais”. Os equívocos chegaram a tratar de um baluarte ao  nível do mar, construído posteriormente pelos portugueses, como  construção francesa, contrariando toda a informação disponível. Completo  despautério depois suspenso.
Na  semana de comemoração dos “398 anos de São Luís” as antigas afirmações  sobre a fundação francesa não faltaram, sempre na trilha já conhecida do  mito, apresentar a descrição de Claude d’Abbeville como “prova” da  fundação da cidade. O calhamaço publicado pelo O Estado do Maranhão, com  informações variadas, inicia como manda a nova “tradição”, afirmando  que no capítulo XIII do livro de Abbeville encontramos “uma relevante  descrição sobre a fundação da cidade” (sic). Nada de novo, é a mesma  leitura enviesada feita por Ribeiro do Amaral, em 1912, depois  reafirmada por Mário Meireles, em 1962, e a partir de então sempre  repetida. No entanto, é um artigo intitulado “La petite São Luís” que,  pela fértil imaginação do autor, merece comentário.
O  artigo refere-se à elaboração de um mapa intitulado Saint Louis,  Capitale de La France Equinioxiale 1615, feito com a contribuição de  historiadores, arqueólogos, pesquisadores, apresentado como “a primeira  ‘fotografia’ clara dos primórdios de São Luís. Uma contribuição à  pesquisa e ao turismo local”. Desenhado com apoio da tecnologia moderna,  letras ao estilo antigo e cor de papel envelhecido, dá a entender que  existiu um mapa com as referências indicadas. Entretanto, já no próprio  título começam as deturpações, pois os franceses jamais se referiram a  São Luís como cidade, muito menos como capital da França Equinocial.
O  termo, obviamente indicando uma posição geográfica, continuou sendo  utilizado na corte dos Bourbon depois da expulsão do Maranhão, pois o  que de fato se concretizou no projeto da França Equinocial foi a  colonização da Guiana. O arquivo da Biblioteca Nacional da França e o  acervo cartográfico da Biblioteca Digital Mundial guardam o mapa  intitulado Carte Nouvelle de La France Equinoctiale, enviado por Febure  de La Barra a Sua Majestade, em setembro de 1665, indicando a costa NE  da América do Sul, cuja posição é referente à Guiana, com detalhe da  Ilha de Caiena. O mapa conhecido do período dos franceses no Maranhão  foi feito pelo português João Teixeira Albernaz, em 1615, possivelmente a  partir do desenho doado por La Ravardière a Diogo de Campos Moreno.
Embora  os documentos deixados pelos franceses sejam ricos em informações, são  muito vagos quanto à localização de cada ponto descrito. Lembramos que a  planta do Fort Saint-Louis não foi localizada. A posição dos baluartes  altos, da ponte levadiça, dos canhões, das casas de pindoba, da capela e  do “lugar a que deram o nome de Convento de São Francisco” (Abbeville,  2002, p.84), exige uma pesquisa arqueológica. Sem a associação das  informações deixadas e o trabalho de campo, mesmo uma simulação se  revestirá de muita invenção.
Palhoças  - Vários exemplos de localizações confusas poderiam ser arrolados. Não  existe certeza quanto ao local das palhoças (expressão usada pelo  capuchinho) que funcionaram como casa e capela dos religiosos.  Abbeville, descrevendo sua saída em companhia de Razilly para as  diversas aldeias de Upaon-Açu, se referiu à canoa tomada em frente de  sua casa. A igreja de Santo Antonio fica no alto de uma colina. É  possível imaginar a casa dos capuchinhos nas proximidades da atual Fonte  do Ribeirão, local mais próximo às águas.
Ainda  sobre o convento e a igreja de São Francisco, há uma idealização. A  afirmativa, “o convento e a igreja de São Francisco, primeiro convento  Capuchinho do Brasil, erguido no local onde encontramos a igreja de  Santo Antonio, mais precisamente na Capela dos Navegantes” carece de  fundamento histórico. Os recursos destinados à construção das duas  unidades religiosas chegaram a 22 de junho de 1614 com o superior Padre  Archange de Pembrock e, logo no início, os trabalhos foram interrompidos  com a ameaça portuguesa em outubro e definitivamente suspensos com a  derrota de Guaxenduba em novembro. O tempo não permitiu construir em  pedra nem igreja nem convento. Os franceses mais se adaptaram aos  núcleos indígenas do que estabeleceram os marcos da urbanização.
A  nomenclatura utilizada no mapa também apresenta equívocos, tais como  assinalar Baie Saint-Joseph (o nome baía de São José foi dado pelos  portugueses à Baía de Guaxenduba) ou a grafia inexistente Caillou, e não  Cahur. Truncada ainda é a informação da localização do forte do Itapari  na praia da Boa Viagem, local na verdade muito distante.
O  pouco tempo de permanência da empreitada de La Ravardière em Upaon-Açu  só lhe permitiu o cumprimento da ordem real emitida no Palácio do  Louvre, qual seja, “a promessa de lealdade e a ordem de, no primeiro  porto, construir um forte e impor-lhe o nome de São Luís, em honra a  vossa Majestade e ao porto o nome de Santa Maria” (Razilly apud Daher,  op.cit.,p.52).
Em  resumo, La petite São Luís é uma criação sem referência histórica, nem o  termo consta dos relatos. Levado pela idealização, o autor compara a  fracassada empreitada francesa com as Missões Jesuíticas no Sul e com o  período holandês de Pernambuco, plenos de realizações, cujas marcas  sobrevivem até nossos dias. Não seria o caso de lembrar que a própria  tentativa também malograda da França Antártica envolveu número maior de  pessoas por tempo mais longo?
São  Luís possui singularidades importantes no contexto das cidades  coloniais brasileiras. Não tanto por ter sido construída sobre o sítio  onde aportaram os franceses, mas pelo traçado uniforme, ortogonal, do  seu núcleo inicial, como nos mostra o mapa reproduzido por Barlaeus em  1647. Uma cidade fundada por determinação expressa do Reino, a exemplo  de Salvador e Rio de Janeiro, mas, ao contrário destas, iniciada dentro  da concepção renascentista de simetria perfeita.
Assistimos  ao início de mais um capítulo da história do mito da fundação francesa  de São Luís. As novas tecnologias da imagem tratarão de suprir a  inexistência de traços franceses no espaço urbano e na cultura da  cidade. No lugar de discussões sobre a formação do espaço urbano  corremos o risco de ver mais um festival de “invenções” a alimentar uma  “tradição” que completará seu centenário.